Segundo funcionárias do Bradesco, o mesmo cuidado sobre assédio visto em campanha publicitária do banco não é visto na rotina dos trabalhadores de suas agências (Por David Ágape) – foto Paulinho Costa –
BIA, inteligência artificial do Bradesco, é vítima de assédio. Parte dos clientes do banco, em vez de usá-la para consultar o saldo, pagar contas ou tirar dúvidas, tem dirigido a ela propostas indecorosas e comentários ofensivos. Por causa disso, anunciou o banco por meio de uma campanha publicitária veiculada na TV e na internet, quando esses avanços indesejados ocorrerem, as respostas da BIA serão mais contundentes.
“Mudamos as respostas da BIA para que ela reaja de forma justa e firme contra o assédio. Sem meias palavras. Sem submissão. Porque, se queremos construir um futuro com mais respeito, precisamos dar o exemplo AGORA”, diz o informativo do Bradesco.
Criada pela agência de marketing Publicis Brasil, que atende gigantes como Nestlé e Carrefour, a ação segue o movimento “Hey, Update My Voice” (Ei, Atualize Minha Voz), da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que por sua vez tem como objetivo lutar contra o preconceito de gênero e o assédio sexual às IAs.
“Seu modo de falar foi violento e agressivo. Estupro é um crime previsto no Artigo 213 do Código Penal. Eu vi no anuário de violência do 1º semestre de 2020 que, no Brasil, um estupro acontece a cada 8 minutos e, em mais de 85% dos casos, as vítimas são mulheres. Não use este tom pra falar comigo e com mais ninguém”, afirma Bia em uma das respostas programadas para comentários considerados ofensivos.
A campanha, em tom de bronca geral, não foi muito bem recebida. No Youtube há, até o momento desta publicação, três vezes mais reações negativas que positivas no vídeo da propaganda. Em sua maioria, os comentários são em desaprovação à iniciativa, com reclamações de que o sistema da BIA não consegue resolver as demandas dos clientes e que a BIA reclama de assédio em comentários que, em tese, não seriam ofensivos como “vamos ser amigas?”, “quero te dar um abraço” ou “eu estou com sono”. A partir daí a campanha virou piada nas redes sociais e diversos memes foram gerados.
Mas como o Bradesco lida com assédios reais sofridos por suas funcionárias?
Assédio sexual e moral
Segundo Cristiane Zacarias, de 41 anos, secretária geral do sindicato dos bancários e financiários de Curitiba e funcionária do Bradesco, embora a campanha do banco sediado em Osasco tenha uma intenção positiva, o mesmo cuidado não é visto na rotina dos trabalhadores do banco. “Dentro do banco a gente vê muitos problemas que são divergentes com a postura que o banco quer demonstrar nessa propaganda. São denúncias de assédio rotineiras”. A sindicalista alega que o banco não possui políticas internas efetivas para combater pequenos conflitos.
Em 2007 o Bradesco foi condenado a indenizar uma ex-funcionária por assédio sexual praticado pelo gerente de uma agência bancária no Pará. Na ocasião, o Bradesco entrou com recurso no Tribunal Superior do Trabalho (TST), argumentando que “assédio sexual implica em importunação séria, grave e ofensiva, e não em ‘simples gracejos ou paqueras'”. O recurso foi negado e o banco foi obrigado a pagar R$ 70 mil para a ex-funcionária.
Em 2019, o Bradesco foi advertido pela 66ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, após denúncia do Ministério Público do Trabalho (MPT), para que o banco desse fim ao assédio moral entre os seus empregados. As diversas denúncias tratavam de assédio moral. Um dos casos é o de bancários demitidos quando vítimas de sequestro. Caso o funcionário entregasse o dinheiro aos assaltantes, era sujeito a demissão.
Além disso, alguns funcionários eram impedidos de sair da agência, mesmo após o fim do expediente, até que a meta de vendas fosse alcançada. Na ocasião, o MPT informou que havia violação contínua dos direitos humanos dos empregados do Bradesco e não foi apresentada nenhuma medida concreta para que a situação fosse revertida. Agora, no final de março, o Tribunal Regional do Trabalho do Rio (TRT-1) condenou o Bradesco a pagar multa de R$ 100 mil por descumprimento da ordem de 2019.
Descaso
De acordo com funcionários e ex-funcionários do banco, existe descaso em relação ao assédio nas agências, onde a chefia pressiona ao máximo para que atinjam metas. É o caso de Jaqueline dos Santos, de 43 anos, moradora de Campo Grande, demitida no último dia 8, após 20 anos de carreira. Desde que passou a trabalhar no Bradesco, após a aquisição do banco HSBC em 2015, Jaqueline afirma que passou a viver uma rotina que classifica como assédio diário. “O Bradesco é muito agressivo e não tem nenhum tipo de escrúpulo.” Ela conta que durante a pandemia a situação piorou, pois as pessoas que estão em home office supostamente teriam que trabalhar em dobro.
Jaqueline alega que trabalhou por sete anos como gerente, sem receber remuneração compatível com a função. Ela foi demitida em 2018. Tempo depois foi reintegrada através de uma ordem judicial, pois teria comprovado que teve danos na saúde causados pelo esforço laboral. “Me sinto muito triste e decepcionada com uma empresa desse tamanho que infelizmente não protege o funcionário e não tem programa de proteção a doenças.” Jaqueline ainda acusa a empresa de demitir funcionários que apresentam atestado médico.
Outras três mulheres ouvidas pela reportagem relatam sobre as suas experiências no Bradesco, mas pediram para não serem identificadas, pois temem retaliações. Maria (nome fictício) de 54 anos, é uma ex-funcionária do Bradesco que passou por um problema parecido, trabalhou por anos em uma agência do Bradesco do Rio de Janeiro, e narra um ambiente tóxico de trabalho, com comentários sobre a sua aparência — ela conta que colegas em cargo de chefia insistiam para que ela usasse batom e maquiagem.
Trabalhando no setor havia mais de 30 anos, também passou a trabalhar no Bradesco após a compra da operação brasileira do HSBC. Desde então, diz ela, foi “tratada como lixo” com episódios constantes de assédio moral que a levaram a um estado de depressão e ansiedade generalizada. No fim de 2020, teria sido demitida por e-mail.
Maria conta que nunca viu uma campanha contra o assédio dentro da agência e que presenciou vários episódios durante os anos que trabalhou no Bradesco. “É triste, eles estão fazendo campanha valorizando um sistema. Nunca se preocuparam com a gente, nunca me perguntaram como eu estava e se eu estava bem.”
Ana (nome fictício), de 43 anos, trabalhou no Bradesco, em Curitiba, por apenas dois anos. Esse período foi suficiente para que ela, não suportando a situação, adoecesse e pedisse para sair. Ela conta que o banco lhe ofereceu um acordo, mas ela só receberia os seus direitos se batesse as metas daquele mês. Ela fala de várias ocasiões em que teria sofrido assédio moral e sexual dentro do trabalho, e que o banco teria sido informado. Segundo ela, reclamar de assédio era como assinar uma carta de demissão.
Em uma ocasião, ela conta que houve um cliente que solicitou crédito ao banco, mas não poderia receber por não ter um bom “score”, e ela não poderia falar isso para ele, mesmo com a sua insistência. Com isso, ele realizou uma reclamação no site Reclame Aqui, chamando-a de tartaruga. Após essa situação ela passou a ser chamada como “tartaruguinha” na agência, inclusive pelo seu gerente. O cliente continuou indo na agência e pedindo para ser atendido por outra pessoa. Ana afirma que não recebeu qualquer defesa do banco, mesmo sofrendo xingamentos e humilhações do cliente.
“Tive outro gestor que dizia para nós mulheres usarmos saia e decote, para fazer visitas aos clientes. Um cliente me mandou mensagens com cantadas, levei para o conhecimento da minha gestora e ela riu, dizendo que eu estava arrasando corações e nada fez. Inclusive para bater uma meta de consórcio disse para eu ligar e oferecer para o cliente, pois ele estava “apaixonadinho” e compraria a carta.”
Adriana Nalesso, presidente do Sindicato dos Bancários Rio de Janeiro, diz que o Bradesco tem utilizado estratégias para reduzir o atendimento direto e humanizado, e praticamente tem barrado o acesso às agências. Nalesso afirma que o Banco aderiu, no início da pandemia, em 2020, ao movimento “Não Demita”, que se comprometia a manter os quadros de pessoal, em meio à crise econômica provocada pela Covid-19. Mesmo assim acabou demitindo diversos funcionários. “Entre as demissões, estão inúmeros funcionários em tratamento de saúde. Bancários e bancárias com depressão, lesão por esforço repetitivo e até câncer foram demitidos sumariamente.”
O que diz o Bradesco
De acordo com o Bradesco, a campanha que aborda o assédio contra mulheres usando a a BIA – Bradesco Inteligência Artificial, é uma manifestação do propósito do banco quanto à crença da responsabilidade das marcas no combate ao assédio. E também cita a iniciativa “Hey Update My Voice”, da UNESCO.
“O Bradesco tem políticas claras e bem definidas que não admitem a prática de qualquer comportamento de assédio e que são amplamente e frequentemente divulgadas nos diferentes canais de comunicação da Organização, além de fazer parte das ações de desenvolvimento e capacitação realizadas pelo banco com seus funcionários.
É importante dizer que, em comitês internos, são analisadas todas as manifestações recebidas e tomadas as medidas necessárias para eliminar tais ações. O banco tem uma governança robusta relacionada às questões discriminatórias e de assédio que constam no Código de Conduta Ética nas Políticas de Gerenciamento de Recursos Humanos e de Diversidade/ Inclusão”, finaliza a nota. (Fonte: Gazeta do Povo)(FEEB PR)