Yolanda Díaz, ministra do Trabalho e Economia Social da Espanha, em encontro com representantes de centrais sindicais em São Paulo (Por Clemente Ganz Lúcio)
Resultados já aparecem: aumento dos contratos de prazo indeterminado, da filiação previdenciária e da participação contributiva ao sistema de seguridade social.
A regulação do trabalho e das relações sindicais na Espanha passaram recentemente por mudanças profundas e que foram concebidas a partir do paradigma de que é direito de todos o acesso a um posto de trabalho de qualidade. Concebe-se como um princípio que deve orientar a formulação e implementação das diversas políticas públicas, assim como se constituir em objetivo que todo o sistema produtivo deve fazê-lo por meio de estratégias e políticas de investimentos para ampliar a capacidade produtiva instalada e a infraestrutura econômica e social, através da pesquisa, difusão tecnológica e inovação, pelo contínuo acesso à educação e formação profissional.
Trata-se de uma transformação nas regras que regem as relações de trabalho para favorecer o incremento da produtividade e a repartição do produto econômico que é resultado do trabalho coletivo. Afirma-se que o diálogo social é um instrumento político essencial para pactuar a visão conjunta de futuro, realizar escolhas estratégicas e celebrar compromissos com a implementação do que foi acordado. No âmbito das relações laborais, afirma-se a valorização das negociações coletivas realizadas por entidades sindicais representativas e de ampla base de representação.
Trata-se de um exemplo para retomar um caminho virtuoso abandonado.
Espanha em 40 anos foram cinquenta iniciativas
Desde 1980, quando a Espanha passou a adotar o Estatuto dos Trabalhadores, o país vinha realizando seguidas reformas laborais, acumulando no período cerca de cinquenta iniciativas. As duas mais extensas e profundas foram promovidas em 1994 e em 2010/12, todas elaboradas pelo Poder Executivo e Legislativo e sem a participação conjunta das partes interessadas (trabalhadores e empregadores), negando o princípio da autonomia coletiva para que os trabalhadores incidissem diretamente na regulação que afeta a vida laboral.
Na Espanha, como em outros países que trilharam por caminhos semelhantes1, o objetivo dessas reformas laborais foi o de reduzir o custo do trabalho, criando a máxima flexibilidade para a alocação da mão de obra, com diversas formas de contrato de curta duração que permitem ajustes da jornada de trabalho; liberação da terceirização e de outras formas de relação de trabalho sem reconhecimento de vínculo (autônomo exclusivo, pejotização, trabalho familiar, entre outros); liberar e reduzir os custos de demissão, sem acumular para as empresas passivos trabalhistas; restringir o poder das negociações, inibindo o poder dos contratos coletivos setoriais e gerais em favor de acordos por empresa; quebrar ou enfraquecer os sindicatos; limitar a regulação do Estado e a atuação da Justiça, entre outras iniciativas.
O argumento base que perpassa as iniciativas tem sido o de enfrentar o desemprego, dar flexibilidade para a empresas competirem e reduzir o custo do trabalho, assim como o de dar prevalência ao indivíduo e à meritocracia como forma de estimular a competição entre as pessoas, em detrimento da solidariedade que favorece e estimula a representação coletiva.
Nesse período a realidade na Espanha, como em outros países, evidenciou a permanência de altas taxas de desemprego, especialmente para os jovens e mulheres, assim como ampliou os vínculos de trabalho precários com predominância de contratos de curtíssima duração e inseguros, fez crescer a terceirização e a desfiliação sindical. A flexibilidade transferiu-se como ônus aos trabalhadores que passam a viver na insegurança permanente e com baixíssimo padrão de proteção efetivo. As consequências econômicas e sociais foram e continuam sendo dramáticas, ampliando as desigualdades e afetando mais gravemente jovens e mulheres. Uma ótima análise dos resultados desse processo foi recentemente publicada pela Confederação Sindical das Comissões Obreiras (CCOO)2.
Destaca-se desse diagnóstico que há um desequilíbrio estrutural do mercado de trabalho espanhol se comparado aos países da União Europeia, que arrasta toda a economia para uma baixa produtividade, alta rotatividade da mão de obra, precarização, queda nos salários e desemprego. Nessas décadas o sistema de relações de trabalho tornou-se frágil e instável, favorecendo a uma relação que ampliou os conflitos, as desigualdades, e trouxe mais insegurança jurídica para as partes.
Os contratos temporários pressionaram os salários e as condições de trabalho, favorecendo a desvalorização salarial que deteriorou o padrão de vida e enfraqueceu a demanda interna do país e, portanto, a capacidade de crescimento econômico.
Trata-se de mais um caso clássico de incremento da produtividade espúria que busca competitividade através da redução de salários e dos custos do trabalho e da precarização, em vez de fazê-lo pela inovação, pela educação e pelo investimento.
Um novo paradigma
A sociedade organizada e o governo na Espanha, por meio das suas instituições e entidades, celebraram um acordo social histórico que é fruto de nove meses de negociação tripartite, também denominado de diálogo ou concertação social, enunciando e declarando compromissos pactuados entre o governo espanhol, as entidades sindicais (CCOO e UGT) e empresarias (CEOE e CEPYME), acerca do sistema de relações de trabalho e dos direitos laborais. Esse acordo foi aprovado pelo Congresso da Espanha no final de janeiro de 2022.
O diálogo social foi inicialmente retomado em 2020 pelo governo liderado pelo PSOE para construir as medidas para o enfretamento da pandemia do novo coronavírus. Uma nova etapa do diálogo foi suscitada através de um processo negocial que percorreu o período de março a dezembro de 2021, uma guinada que recuperou o princípio estruturante de uma democracia fundada na autonomia coletiva das partes para regular sua relação. Essa prática e o fortalecimento desse princípio são elementos essenciais para a revitalização das democracias, pois recolocam o diálogo social tripartite como instituinte político de compromissos, regras e direitos, celebram um modo avançado de participação social e permitem realizar mediações que a arena legislativa não é capaz de cumprir e, portanto, criam espaço e movimento complementares para a vitalidade da vida em sociedade.
O que possibilitou essa guinada? O PSOE recupera e atualiza para a arena política, com a vitória eleitoral de 2019, a agenda de um projeto de desenvolvimento socioambiental, econômico, político e cultural que resgata os fundamentos do trabalho para todos e da partilha do incremento da produtividade mobilizado como estratégia de investimentos públicos e privados, consignado no “Plano de Recuperação, Transformação e Resiliência”. Esse Plano foi apresentado e aprovado pela União Europeia em meados de 2021 e reúne no seu Componente 23, denominado de “Novas políticas públicas para um mercado de trabalho dinâmico, resiliente e inclusivo”, quatro blocos de reformas a serem promovidas no espaço do diálogo social, a saber:
- Simplificação dos contratos: generalização do contrato por tempo indeterminado, causalidade da contratação temporária e regulamentação adequada do contrato de treinamento.
- Estabelecimento de um mecanismo permanente de flexibilidade interna e requalificação de trabalhadores em transição.
- Modernização da negociação coletiva.
- Modernização da contratação e subcontratação de atividades comerciais.
O diálogo social, aberto em março de 2021, enunciou as diretrizes acima que compõem o quadro referencial das relações com a União Europeia para os planos de investimentos em infraestrutura, capacidade produtiva e políticas sociais que estão sendo mobilizados.
Para tratar do enfrentamento da crise sanitária na Espanha, governo, trabalhadores e empregadores criam um espaço de diálogo tripartite a partir do qual celebram acordos para a implementação de políticas e programas para proteger os empregos e a renda dos trabalhadores. As primeiras reformas implementadas trataram do trabalho remoto e teletrabalho (setembro de 2020), da igualdade salarial entre mulheres e homens (outubro de 2020), de medidas para garantir os direitos trabalhistas das pessoas envolvidas na distribuição no campo das plataformas digitais (maio de 2021), de um novo aumento do salário mínimo, de políticas ativas para a geração de emprego, entre outras importantes medidas.
Em dezembro de 2021 chegou-se a um novo acordo geral histórico que promove uma guinada no sentido das dezenas de reformas laborais realizadas ao longo de quatro décadas.
O emprego e a negociação coletiva são os eixos articuladores das medidas. O objetivo é enfrentar e superar a precariedade instalada no mundo do trabalho na Espanha, recolocando os contratos de prazo indeterminados como predominantes nas relações laborais. Isso se faz eliminando-se o uso generalizado e restringindo de forma regulada o uso dos contratos temporários por serviço ou empreitada; trazendo para os jovens equidade no ingresso na vida laboral, por exemplo, reduzindo as diferenças precarizantes dos contratos de experiência em relação aos demais. Cria mecanismos que encarecem as demissões e o uso dos contratos temporários, entre outras medidas.
A proteção dos empregos também se efetiva através de medidas e programas permanentes que visam a proteger os empregos nos momentos de crise, criando condições de flexibilização para as empresas enfrentarem problemas e crises e, ao mesmo tempo, dando garantia aos empregos e os salários.
Outro eixo articulado da reforma de 2021/22 é recolocar os sindicatos no jogo social da regulação e da disputa distributiva. Volta-se da dar poder de negociação aos sindicatos e, em especial, a prevalência das convenções coletivas setoriais e gerais sobre os acordos coletivos por empresa, de tal modo que, como exemplo, não é mais possível um acordo de empresa reduzir o salário fixado na convenção setorial ou geral. Os sindicatos e as negociações passam a incluir os terceirizados e outras formas de contratação.
O trabalhador ganhou como direito fundamental o acesso permanente e contínuo à formação profissional. Avançou-se em políticas de igualdade entre homens e mulheres, de proteção dos jovens na transição entre escola e trabalho. Encareceu-se o custo de demissão ou do uso específico de contratos flexíveis. Adotou-se a preservação das regras contidas em um acordo até que um novo seja celebrado, entre outras medidas.
Os resultados já aparecem, como o aumento acentuado dos contratos de prazo indeterminado, o aumento da filiação previdenciária e da participação contributiva ao sistema de seguridade social.
Que essa trajetória iniciada na Espanha seja fortalecida e avance para recolocar o mundo do trabalho no centro das estratégias e projetos de desenvolvimento. Que a negociação coletiva seja estruturante de relações laborais fundadas em princípios democráticas para sua regulação. Que o diálogo social seja a opção política para tratar dos problemas, dos conflitos e para realizar escolhas de caminho, objetivos e projetos. Que mais países se mirem esse exemplo. Que o Brasil se inspire para fazer sua escolha em outubro próximo e que em breve comecemos uma nova caminhada.
Clemente Ganz Lúcio é sociólogo, consultor sindical, assessor do Fórum das Centrais Sindicais e membro do NAPP Economia da FPA. Foi diretor técnico do Dieese (2004/2020) e membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – CDES (2004/2018). (2clemente@uol.com.br) (Fonte: Teoria e Debate)
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